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O espelho invertido das tarifas: do suco de laranja ao streaming


Publicado na Paytv

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A história, com sua ironia peculiar, nos apresenta um espelho invertido no complexo tabuleiro das relações comerciais Brasil-EUA. Nos idos da década de 1970, ao intensificar e modificar a cota de tela, uma política já existente para fortalecer o cinema nacional, o Brasil viu-se refém da retaliação americana que ameaçava o vital suco de laranja. Nossa cultura foi sacrificada pela economia. Hoje, o jogo parece ter mudado. A mais recente ameaça de Donald Trump, visando impor tarifas de 50% sobre “todos os produtos brasileiros” em 2025, remete a uma velha tática de pressão, mas com uma nova oportunidade para o Brasil exercer o princípio da reciprocidade. A questão agora é se podemos usar a economia como alavanca para proteger nossos próprios interesses.


Na década de 70, a imposição de tarifas sobre o suco de laranja era a arma dos EUA contra a nossa ousadia de proteger o cinema brasileiro. Ameaçando inviabilizar um de nossos principais produtos agrícolas, os Estados Unidos conseguiram, em grande parte, dobrar nossa vontade de fomentar a produção cultural local. Foi um claro exemplo de como o poder econômico pode ser usado para moldar a cultura e os interesses soberanos de outra nação. Essa memória nos assombra, mas também nos ilumina sobre o caminho que podemos trilhar agora.


No cenário atual, com Trump brandindo a espada das tarifas de 50% sobre “todos os produtos brasileiros”, incluindo, sim, o suco de laranja e o café, a situação é gravíssima. Um aumento tão brutal nos impostos pode, de fato, inviabilizar a exportação de muitos de nossos produtos para o mercado americano, causando um impacto devastador em nossa economia. É aqui que entra o princípio da reciprocidade: se os EUA atacam nossa economia, o Brasil tem o direito e a prerrogativa de responder na mesma moeda. A pergunta crucial então se torna: qual seria o “suco de laranja” dos EUA no Brasil hoje? A resposta aponta diretamente para os lucrativos serviços de streaming.


Gigantes como Netflix, Amazon Prime Video e Disney+, em sua maioria empresas americanas, dominam o consumo de conteúdo em nosso país, gerando bilhões em receita. Essas plataformas são, de certa forma, as “Hollywoods” da era digital, com uma presença cultural e econômica massiva no Brasil. A lógica é simples: se os Estados Unidos ameaçam taxar nossos produtos, o Brasil poderia considerar a taxação sobre a receita ou o faturamento dessas plataformas de streaming americanas que operam em nosso território. Essa medida teria um impacto financeiro direto sobre empresas que dependem fortemente do mercado brasileiro para seu crescimento global. Além disso, enviaria uma mensagem política inequívoca de que o Brasil não aceitará tarifas unilaterais passivamente, transformando uma ameaça em uma poderosa alavanca de negociação. A receita gerada por essa taxação, inclusive, poderia ser direcionada para o fomento do nosso próprio audiovisual, virando o jogo do passado: agora, a economia seria usada para fortalecer nossa cultura.


Claro, medidas recíprocas trazem riscos de escalada. Uma “guerra comercial” pode ter consequências amplas e afetar outros setores. No entanto, diante de ameaças tão abrangentes e potencialmente devastadoras como as de Donald Trump, o Brasil precisa ter em seu arsenal todas as ferramentas para defender seus interesses. A possibilidade de taxar o streaming como uma medida de reciprocidade não é apenas uma reação; é uma estratégia séria e legítima na mesa de negociações. Se os EUA impõem custos aos nossos produtores, é mais do que justo que os serviços americanos que lucram em nosso país também enfrentem custos. O princípio da reciprocidade é uma linguagem universal no comércio internacional, e o Brasil pode e deve utilizá-la para proteger sua economia e sua soberania. A “guerra das telas” e das tarifas continua, e a lição do passado é clara: a proteção dos nossos interesses exige coragem e uma estratégia afiada. A pergunta que fica é: o Brasil, desta vez, usará o espelho invertido da história para defender-se com a mesma firmeza que os EUA demonstraram no passado?


*Vera Zaverucha é consultora de Legislação Audiovisual e ex-diretora da Ancine.

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SOBRE A VERA 

Com mais de 30 anos de experiência na área pública, Vera ocupou diferentes cargos nas principais instituições responsáveis pelas políticas públicas para o audiovisual e pelo financiamento do setor cinematográfico no Brasil
De forma didática e clara,
Vera consegue aproximar o conteúdo para diferentes públicos e ajudar aqueles que buscam se reciclar ou querem conhecer mais sobre a área. 

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